CORAÇÃO DE POBRE

CORAÇÃO DE POBRE

 

“CORAÇÃO DE POBRE”

Domingo da Misericórdia

 

                               MI-SE-RI-CÓR-DI-A, palavra bonita. Gostosa até no pronunciar. Falamos muito esta palavra. Ato penitencial. “Misericórdia, Senhor, Misericórdia...!”. Mas será que sabemos o que significa realmente misericórdia.

                               Em 2008 fui três vezes visitar a Rota das Cachoeiras em Corupá. Alguém aqui já foi lá? Levante o braço. Pronto, vocês já podem morrer. Quem ainda não viu, não morra antes de ver. É um espetáculo da natureza. A primeira vez que fui emocionei-me do início ao fim com tamanha beleza. E desde a primeira impressionou-me aquela imensa quantidade de água caindo sobre as pedras. É muita água. E olhando para aquilo tudo comecei a pensar: “Meu Deus, faz anos que esta água está caindo... não faz séculos..., Meu Deus fazem milhões de anos que está água está caindo e não cessa. Meu Deus, que imenso desperdício de água!...”. E olhando para aquela imensidão de água começou a vir uma palavra em minha mente e coração: “Misericórdia...Misericórdia...”. Parecia que aquela água toda estava dizendo isto: “Misericórdia...Misericórdia”. Foi então que compreendi que Deus quando quis falar de sua Misericórdia, Ele fez as cachoeiras.

                               Misericórdia. Palavra formada por duas latinas: MISERERE e CORDES, ou CORDIA. Miserere, pobreza e Cordia, coração. Pobreza de coração. Ter o coração de pobre.

                               Pobre e rico são duas categorias que não tem relação direta com dinheiro. Pobre, é o coração desapegado. O coração humilde, acolhedor. Doador, nada retém para si. E que possui um amor incondicional. Ama e pronto. Sempre vai amar na responsabilidade fidelidade. Rico, é o coração orgulhoso, egoísta ao extremo. Nada sabe repartir. Retém tudo para si. E como se sente o centro do mundo, é incapaz de compreender os outros e amar, acolher. Tudo é só para ele. Vê tudo a partir de si mesmo. Há muitas pessoas com dinheiro com o coração de pobre e há muitos pobres com o coração de rico.

                               Deus é pobre. Sempre nos acolhe, perdoa, compreende, ama incondicionalmente. Sempre, sempre. Não cessa de amar. Assim como a cachoeira, nunca cessa a água: Misericórdia, misericórdia, misericórdia...

                               Em julho de 2006, sob a inspiração do Irmão Roger Shutz, fundador de Taizé, que passava um mês ao ano em uma favela do mundo. Comendo, bebendo, vivendo como as pessoas do lugar. Pensei em passar três dias em uma área de carência em Joinville. Fui para uma invasão no Jardim Paraíso. Pedi para Irmã Salete da Pastoral Social que visse uma família que pudesse me hospedar por três dias. Ela conseguiu a casa de seu Lúcio e dona Suely, pais de cinco filhos. E a irmã quando veio confirmar e acertar tudo comigo, já veio impressionada com uma coisa. Dona Suely e seu Lúcio nem perguntaram quem eu era. O que ia fazer. Só disseram que eu poderia ir. E fui numa quarta-feira. O acolhimento foi o melhor possível. A casa muito simples, feita de madeira, dois cômodos. O primeiro era a sala, cozinha e mais o quarto onde a mãe de dona Suely quando vinha ficar com eles ali, numa cama se acomodava. No outro cômodo dormiam todos, os pais e todos os filhos.

                               Foram três dias de muito aprendizado. Tudo era de todos. Faziam tudo juntos. Uma das crianças, a Elisa, usava chupeta e sempre em um lugar da boca. Seus dentes estavam atrofiados. Não tinham crescido onde ela ficava mordendo a chupeta. Então negociei com ela os três dias para que deixasse a chupeta. Teve um dia que prometi que, se ela passasse o dia inteiro sem usar a chupeta eu iria presenteá-la à noite com um chocolate prestígio. E ela passou o dia inteiro. A mãe disse que foi difícil. Mas ela conseguiu. E à noite depois do jantar quando fui dar-lhe o presente. Ela logo perguntou: “E cadê o dos outros?”. Eu só tinha levado uma barra de chocolate. Não esperava que uma menina de três anos me dissesse aquilo. “Amanhã eu trago para os outros. Este é teu porque você conseguiu passar o dia inteiro sem a chupeta...”. Dei o chocolate para ela. Abriu e para meu segundo espanto, ela quebrou um pedacinho da barra de chocolate e deu para cada um. Não acreditava que uma criança fizesse isto sem que ninguém pedisse. Para mim foi uma das melhores lições de eucaristia. Outra coisa que me chamou atenção além e tantas nestes três dias foi que os dois mais velhos, uma moça e um menino usavam a mesma mochila para irem para a aula. Ela usava de manhã, e quando chegava para o almoço tirava tudo e dava para o irmão que usava durante a tarde.

                               O pai, seu Lúcio trabalhava de servente de pedreiro. Saía bem cedo e só voltava à noite. A grande educadora era dona Suely. Sempre tranqüila. Viviam no limite de tudo. A comida era contada. O dinheiro era pouquíssimo. Comprava a cada dia comida. E sempre serena. O dia inteiro de trabalho. As crianças brincavam, mas não saiam de perto da casa. Tinham na mãe toda a segurança. A fortaleza. Havia ainda o Romário, o mais novo, tinha apenas um ano e poucos meses que exigia maiores cuidados.  E por fim um cachorrinho vira-lata ainda pequeno.

                               E o maior desafio de todos foi a hora de ir ao banheiro. Só deu vontade no segundo dia. E o sanitário deles era uma latrina cavada no chão. Quando levantei a tampa e vi a situação da bio-diversidade lá embaixo não consegui. E eu tinha me comprometido com o Senhor de viver tudo o que eles viviam. Mas ali chegou no meu limite. O limite do nojo que é muito bem tratado nestas experiências. Fui no banheiro da igreja, prometendo que iria de alguma forma construir um banheiro digno para eles. E conseguimos no meses seguintes a esta experiência. Várias pessoas ajudaram e hoje eles tem um banheiro integrado na casa.

                               Fui acolhido sem nenhum questionamento, tratado como um da família, e o melhor sempre procuraram dar para mim. O banho naquele banheiro que dona Suely preparava para mim, com água morna (pois era época de frio), o melhor sabonete, e até um pote de creme se quisesse passar no cabelo, (tudo que tinham de melhor era oferecido), foram os melhores banhos que tomei na minha vida. Sentia-se como um rei naquela latrina.

                               E depois de tudo. Passei um bom tempo sem poder, por causa do tempo, voltar lá. Mas quando voltei. Nenhuma reclamação pela ausência. A mesma acolhida e compreensão. Só a saudade.

                               Misericórdia. Coração de pobre. Deus é assim. Sente muito quando pisamos na bola e caímos em nossa vida. Mas nos ama como somos. Mesmo com nossas quedas. Podemos sempre contar com seu colo de pai.

                               Um dos poucos pedidos de Nosso Senhor foi: “Sede misericordiosos como o vosso Pai do céu é misericordioso!”.

                               Quando cheguei à décima quarta cachoeira em Corupá. A emoção aumentou. Chegou ao máximo. Eu estava em êxtase diante de tanta beleza. A última cachoeira acumula toda a magnitude. É um cenário paradisíaco. Escondido no meio da mata e das pedras. Grande queda d’água que bate nas pedras e forma uma piscina cercada de pequenas árvores e limo. Ajoelhei-me chorando. “Pai, porque tanta beleza e aqui escondida? Quantas pessoas nunca vão ver isto!”. Ao que Ele me disse: “Eu fiz para o meu Filho Jesus!”. Ouvindo isto senti ciúmes. “Pai, e eu?”. E veio a resposta que me fez entender muitas coisas: “Seja que nem meu Filho Jesus que tudo isto será teu também!”.

 

                               Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!